terça-feira, 3 de março de 2009

A carta devolvida

A semana passada chegou devolvida a carta que te enviei ainda tu não estavas sequer a pensar em começar a fazer a mala para Haia. Supostamente deveria chegar antes de ti, mas perdeu-se no caminho, e regressou às minhas mãos.

Deixo-a aqui escrita, para já agora tu leres (mesmo que já esteja fora do contexto):

«
Biblioteca de Algés,
(nem sei a que dia vamos, mas consulto o telemóvel, e...)
21 de Janeiro de 2009,
Quarta feira,
e falta menos de uma semana para ires para as Netherlands.

Não era da biblioteca de Algés de onde te queria escrever. Era antes de algum sítio típico de Lisboa, tipo Chapitô (que não é muito típico, mas é bonito), ou Miradouro de Santa Luzia, ou Senhora do Monte, ou de ontro sítio qualquer onde me imaginasses a escrever esta carta, e pudesses sentir o cheiro a Lisboa (em vez do cheiro da biblioteca de Algés).
Quando esta carta te encontrar (e espero que te encontre mesmo, que não chegue antes de ti e por isso venha de regresso às 7 colinas), já tu estarás nesse país que farás de conta que é teu durante os próximos 6 meses.
Nesta altura, imagino que te terás sentido nervoso toda a segunda, que te terás sentido nostálgico por deixares os churrascos do teu pai, as bolachas de chocolate que a tua mãe compra no Jumbo (ou no sábado ou no domingo, já que lá vais quer num dia quer no outro), o plasma do quarto da tua irmã, as discussões entre o teu primo e a tua avó (pois, pois!...).
De segunda para terça mal terás dormido: cá por mim rebolaste na cama durante horas, a pensar que não te podes esquecer de nenhum papel nem do bilhete de avião, a pensar no que irás lá encontrar, e que vais ter de ser tu a lavar as tuas meias e cuecas durante meses.
Na madrugada de terça terás a sensação, ao sair de casa rumo ao aeroporto, que deixaste alguma coisa para trás (aposto que não levaste a tua almofada com uma botija de água quente lá dentro, a que te ofereci pelo Natal!).
Imagino-te agora no avião: ele a subir, a subir, e tu a veres Lisboa cada vez mais pequenina, mais pequenina, mais pequenina, a dizeres adeus enquanto acenas.
E, umas horas depois, a veres haia cada vez maior, cada vez maior, cada vez maior, com um sorriso para lá de grande.
Aí só te esperam coisas boas: gente bonita à farta, cinema, teatro, exposições (mas tudo em holandês, o que é que julgas?!) diferentes todas as semanas, todos os dias, em vários espaços, lugares e becos. Discutirás em inglês o Obama, a globalização, o consumismo, o Ocidente e o Oriente, Portugal, a União Europeia, África, o comunismo, o facto de uma amiga tua ser comunista, o capitalismo, as crises do capitalismo, a ecologia, a reciclagem, o Mundo.
Discutirás em inglês com um holandês, um italiano, um sueco, uma dinamarquesa e a amiga finlandesa, com um japonês, uma muçulmana linda de véu e olhos pintados, um americano anti-América.
Discutirás com todos ao mesmo tempo e um de cada vez, em inglês, arriscando as três palavras em holandês que sabes, e arranhando o teu mau francês para mostrares que sabes falar francês.
Comprarás bolachas de chocolate, das mais baratas que houver (que são caras na mesma), comerás muita lasanha congelada e chegarás mais gordo a Lisboa.
Andarás muito de bicicleta. Conhecerás tudo de bicicleta. E se calhar não chegarás mais gordo a Lisboa.
Chegarás mais feliz.
Mais culto.
Chegarás mais velho, mais maturo.
Chegarás sabendo lavar as tuas meias e cuecas.
Mas sei que chegarás mais tu. Mais parecido contigo próprio.
Sei que encontrarás o que seja que andes à procura, aí nas Terras Planas.

Consigo ser egoísta o suficiente para te dizer que te foste embora na pior altura.
Disseste-me que era bom estar sozinha e não me disseste como se fazia.
Agora que te sentes culpado, digo-te: se calhar é melhor assim. "Olha, Ana, agora estás mesmo por tua conta. Não terás de lavar a tua roupa interior durante 6 meses, mas não tens muletas, elas embarcaram num vôo da Easyjet por 100 euros para o Norte da Europa - agora vira-te!"
E vou virar-me, ora pois!
Assim, cá fica por escrito a intenção de, nos próximos meses, ser presença assídua dos teatros, cinemas e salas de espetáculos desta capital!

è bom ter-te na minha vida.

Entretanto, chega a hora das recomendações:
-Não te percas demasiado
- não te esqueças da carteira não sei aonde
- actualiza o blog
- manda cartas, que eu nunca recebo cartas pelo correio
- come fruta e bebe leite
-modera o alcóol e o tabaco
- fuma português suave
-estuda alguma coisa

Boa sorte.
Um beijo grande, com barulho, e um abraço apertado,
Ana

ps: daqui a uns meses convida-me para ir aí, ok?

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Bem, aqui está ela.

3 comentários:

  1. uffa... que dose miúda! como eu me sinto GIGANTE por vos ter na minha vida! isto vai sair uma coisa muito lamechas... assim, muito à carmen, do tipo: 'como eu vos amo !'

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  2. Hoje recebi um livro de presente de Natal, "O lado selvagem" de Jon Krakauer, adaptado para cinema pelo Sean Penn, no filme "Into the Wild". Recordei momentos, sentimentos e vontades. Tive vontade de chorar. E li a tua carta devolvida para o Tiago, perdido na selvajaria da ‘International City of Peace and Justice’... A encontrar-se.
    Posso dizer que sou um pouco como a Carmen.

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